Do Ginjal - ou e se houvesse um Festival Off?

12-01-2010 23:24

Num dos dias do Festival de Teatro de Almada desci por acaso a Cacilhas, ao Cais do Ginjal – ao antigo armazém-espaço das companhias Olho e Útero – para ir ver as Curtas (mostra de espectáculos de curta duração) da companhia Primeiros Sintomas. Chegar ao Ginjal por cima, vinda de Almada, do Festival (que por duas semanas inverte a relação centro-periferia que costuma ser a que a cidade tem com Lisboa) e não ir de barco (já que Cacilhas é principalmente o lugar onde se chega de barco) fez aparecer uma relação possível entre os dois lugares: como se o Ginjal fosse o Off do Festival de Almada, melhor, como se o pudesse ser (já que foi completamente um acaso o facto de as Curtas aí se apresentarem nesse dia).

O espaço do Ginjal, um velho armazém numa zona que aguarda indefinidamente por uma re-qualificação urbana que muito provavelmente lhe alterará radicalmente a vocação, foi, nos anos 90, um importante lugar de experimentação artística e teatral. Tendo passado por lá o grupo o Olho de João Garcia Miguel e o Ùtero de Miguel Moreira, serviu também de escritório a companhias como a Re.Al de João Fiadeiro, de ateliê a diversos artistas e foi um importante ponto de confluência de criadores interessados em experimentar propostas suas, fora das grandes pressões dos espaços mais convencionais.

Assim, esta descida ao cais do Ginjal em dia de Festival de Almada, este voltar a ver teatro ali – ao lado do Tejo, com a vista mais bonita que conheço sobre a cidade de Lisboa e aquele cheiro a dias que passam devagar (congelados que estão sob ameaça de uma imaginável «turistificação» maciça da zona) – deu-me que pensar em possibilidades de experimentação a incentivar, em se ter espaço e tempo para fazer pequenas coisas e se as apresentar sem grandes problemas – sem terem de ser extraordinárias – que foi o que, com uma ou outra excepção, de facto aconteceu.

Foram peças curtas escritas, encenadas ou interpretadas por actores/ cenógrafos/dramaturgos/encenadores/músicos/performers, correspondendo cada uma à cumplicidade da equipa que as montou, apresentadas umas a seguir às outras em recantos específicos do armazém, público a pé, banquinho desmontável na mão, 12 ao todo, bar ao fundo – convívio no fim.

Guiné Meu Amor, texto de oralidade fácil e fluída de Fernando Vilas-Boas, aconteceu a duas vozes, duas actrizes (Raquel Dias e Anabela Brígida) em cima de duas colunas a falar de si como mulheres, de um ele com uma tatuagem e de uma Guiné trauma-mito num registo a deslizar para o vulgar, sem uma mensagem clara – a fazer pensar num certo tipo psicologizante de memória da Guerra feita a partir das lembranças do soldado português e da sua família (de que o exemplo mais acabado são os muitos livros recém-editados sobre este tema).

O Pátio, de Bruno Bravo é um exercício final dos alunos do 3º ano do Curso de Formação de Actores da ESTC de 2006, peça curta com texto escrito pelo encenador já apresentada nesse ano no Teatro da Comuna.

Relicário, encenado e interpretado por Raquel Dias (que, aliás, com uma capacidade de transformação admirável, entrava em três espectáculos diferentes na mesma noite), misturava o imaginário dos contos de fadas com o céu-inferno das expectativas criadas pela comunicação por sms num espectáculo interessante, caso a dramaturgia e o nexo causal da «narrativa» tivessem sido mais explorados. Maria Jesuína – A Mikas, um texto original de Emília Costa interpretado por Ricardo Neves-Neves e encenado por Bruno Bravo, colocava o público ao cimo de umas escadas a olhar para a Mikas, um travesti preso que discorria sobre a sua desgraça perante os nossos olhos que se habituavam ao insólito do lugar.

Traz-me o teu amor, a partir de Charles Bukowski encenado por Stephane Alberto e brilhantemente interpretado por Bruno Bravo, Raquel Dias, Miguel Castro Caldas (a fazer de médico!) e Catarina Mascarenhas foi eventualmente o espectáculo mais «acabado» e surpreendente do conjunto: num estranho e impecável cenário (no armazém, em cima) jardim de um hospício, Bruno Bravo visita a mulher que o insulta sem poupar nos palavrões, à la Bukowski numa bela e imaginativa tradução, acusando-o de «ir às putas». Chega o médico (Miguel C. Caldas a fazer tão dele próprio que, numa aparição de meio segundo, se torna um médico perfeitamente verosímil embora insólito) com quem a paciente, representando, se porta bem, para, mal ele sair, voltar aos palavrões. Despedem-se e o público é convidado a olhar para uma montra que se acende ao longe (num muito bem conseguido dispositivo cenográfico de encenação), onde está um casal num quarto. Toca o telefone, fim da história, sim ele vai «às putas».

O Líder, interpretado por David Almeida, o anão-actor notável que aparece em todos os filmes portugueses e nos espectáculos da Cornucópia, fala disso mesmo, de ser anão e actor e de ser conhecido por toda a gente, da vida e do teatro e de quando a vida e o teatro se misturam. Estando eventualmente em processo, texto e encenação ainda a experimentar, O Líder desarma pelo grau de sinceridade do que nos é dito (graças sobretudo à generosidade-vontade de intervenção de David Almeida, o actor e o anão – a pessoa) e pelo humor com que o faz. É daqueles espectáculos que dá vontade que cresçam, ainda bem que pode ser experimentado e apresentado. Ficamos à espera.

E depois de tudo, no dia 6, um concerto punk-rock (da Banda os Duendes, do cenógrafo Stephane Alberto) e o bar, espaço muito importante onde nascem em catadupa projectos e ideias, o lugar ajuda. Até que alguém disse: «Vejam! Lisboa está a arder! É um incêndio!!!» E de Cacilhas, em Julho, a beber cerveja (como Nero?), ficámos a ver Lisboa que ardia. E viva o Ginjal.

Fonte: Le Monde Diplomatique, por Ana Bigotte Vieira

Voltar